Quem vai a Santiago do Chile não deve perder a oportunidade de uma visita ao “Museo de la Memoria y los Derechos Humanos” (site oficial: https://mmdh.cl/), inaugurado em 2010, um dos mais instrutivos espaços latino-americanos que afronta o esquecimento das atrocidades ditatoriais-totalitárias na América do Sul. Não esquecer para nunca repetir parece ser o mote desta obra-prima da museologia politizada que já entrou para o rol dos pontos turísticos mais relevantes a se conhecer naquela que é uma das mais belas metrópoles de nosso continente, ao sopé da Cordilheira dos Andes e imersa na densidade de uma história que nenhum brasileiro deveria se dar ao luxo de desconhecer.
Lembro que as horas passadas dentro deste impressionante e inovador museu, que visitei em 2017, deixaram profundas marcas e aprendizados não apenas sobre os horrores perpetrados pelo regime de Pinochet, instalado violentamente em 11 de Setembro de 1973 pelo conluio dos Yankees com a burguesia chilena e os mortíferos milicos, mas também sobre as devastações causadas pelo autoritarismo na América Latina quando nossos povos se fazem submissos e se põe de joelhos diante dos ditames do Tio Sam e de seus títeres locais.
Em seu provocativo texto publicado na Folha, durante o período de vigência da efeméride dos 60 anos do golpe de 64 no Brasil, Conrado Hübner Mendes (2024) deu algumas alfinetadas em Lula e sua política da memória, que se mostra hoje insuficiente e tímida (diante dos militares, vemos uma nova encarnação do “Lulinha paz-e-amor”, ainda que esta administração não se mostre nem um pouco leniente com os perpetradores do coup d’état falhado do 8 de Janeiro de 2023). Conrado tece críticas que me parecem dignas de atenção, contrastando a atitude ultra-conciliatória de nosso presidente com a atitude da ex-presidenta chilena Michelle Bachelet. Vale a leitura, e fica a provocação:
Lula mandou esquecer, Bachelet mandou lembrar
POR CONRADO HÜBNER MENDES
Michelle Bachelet se atreveu. Primeira mulher presidente da República na história do Chile, foi aconselhada a não “remoer a história” para não “dividir a sociedade” nem praticar “revanchismo”. Mas decidiu construir um Museu de Memória e Direitos Humanos, inaugurado em 2010, três anos antes do aniversário de 40 anos do golpe militar.
Criticada por não apresentar “visão equilibrada” do passado, por não ser justa com “os dois lados” e esconder o “contexto” do golpe militar de Augusto Pinochet, Bachelet enfrentou negacionistas da ditadura e entregou não só um monumento de reparação coletiva por atrocidades contra a vida, mas um motor de educação democrática. Permitiu não só lembrar de tragédia histórica, mas praticar o compromisso de não repeti-la.
Em 11 de setembro de 1973, Pinochet decretou estado de sítio por “comoção interna”. O dispositivo jurídico de fachada estava previsto na Constituição de 1925, artigo 72. Alegava necessidade de “prevenir e sancionar rigorosamente e com a maior celeridade os delitos que atentam contra a segurança interna”.
Em 2022, militares herdeiros de 64 e Bolsonaro planejaram usar do mesmo dispositivo para prender Alexandre de Moraes e anular eleições. Argumentaram estar “previsto na Constituição” (artigos 136 e 142). Fracassaram no ato, no argumento e no cinismo. Em 64, o golpe militar brasileiro foi menos dissimulado e usou de “ato institucional” sem tergiversar nem dormir na embaixada da Hungria.
A ditadura militar chilena matou mais de 30 mil cidadãos. Encarcerou em centros clandestinos, perseguiu, torturou e fez desaparecer. Produziu mais de 200 mil exilados.
Quem visita o museu gratuito lê registros de fatos diversos: a violência sexual contra mulheres detidas, 229 grávidas, outras tantas engravidadas por estupro militar; as práticas de fuzilamento em que alguns feridos jogados ao rio conseguiram sobreviver; as crianças capturadas e assassinadas; o artesanato produzido no cárcere; os cursos de ciências sociais “purificados de toda influência perniciosa”; os livros queimados; a centralidade das mulheres na recomposição do tecido social.
Cidadãos, estudantes e crianças chilenas podem participar de debates, cursos e eventos culturais no edifício grandioso do museu. E se deparam com perguntas como “o que herdamos da ditadura?” e “o que acontece se nos esquecermos?”
Bachelet declarou: “Nunca deixa de me surpreender a atitude dos que reagem negativamente a algo tão essencial: preservar a memória de um país particular quando parte dessa memória produziu tanta dor e se espera que não se passe nunca mais. Justamente porque não queremos reviver a dor, é tão essencial conhecer. E conhecer de uma maneira gráfica, não só pelo que outros contam. Encontrar fotografias, filmes, artigos, pessoas, com caras que reflitam o que lhes passou. O museu traz uma mensagem permanente de como devemos cuidar da vida de nossos cidadãos”.
Ao cidadão brasileiro foi negada essa oportunidade educativa. Aos 60 anos do golpe, não só carecemos de um projeto de museu de memória, tolerância e direitos humanos. O governo federal está proibido de lembrar do golpe, afaga a instituição militar visceralmente envolvida numa nova tentativa de golpe e se vê metido em esforços para mensurar e prevenir a irritação de generais.
Lula nos avisa por seus porta-vozes que prefere “pacificar” as relações com militares. Entre a memória e o esquecimento, o idealismo e o pragmatismo, o meramente simbólico e o material, acredita optar pelo lado direito da equação. O lado esquerdo seria uma bobagem a ofuscar o que importa.
Acredita fazer concessão em nome de outras prioridades, como redução da pobreza, combate à fome e geração de emprego. E não percebe que inclusive isso, a possibilidade de vida digna do trabalhador, preto e pobre, depende da neutralização do militar que continua a poder lhe dar tiros. Na pior das hipóteses, o Superior Tribunal Militar absolve o atirador com base em sua “legítima defesa”.
E assim Lula entrega o mínimo do mínimo, sem pedir nada em troca. Nem o fim da aposentadoria das filhas, nem responsabilidade orçamentária, nem subordinação à autoridade civil, nem coisa alguma. Um jogo de soma zero (“winner takes all”, ou “milico takes all”).
Bachelet manda um recado, citando poema de Gonzalo Rojas (“El espejo”): “Só se aprende aprende aprende, a partir dos próprios próprios erros”.
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC
FSP 27.03.2024
Publicado em: 04/04/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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